Empréstimos e generosidade cristã - Quais os limites? (act.)

13/02/2017 13:02

                                  

 
Existe um mandamento de Jesus que é frequentemente descontextualizado e que causa algumas dúvidas aos cristãos. O que pretendemos nesta matéria, além contextualizar corretamente a passagem, é também enquadrar no ponto de vista cristão a sensível questão dos empréstimos.
 
Dá a quem te pedir, e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes.
Mateus 5:42
 
Este mandamento de Jesus é dado no famoso dicurso "O SERMÃO DA MONTANHA", discurso esse que é certamente um dos mais importantes discursos de Jesus e para muitos a carta magna do cristianismo.
Aqui se dão muitas das diretivas cristãs que devem servir de linha de conduta, mas este discurso visto sem contextualização e explicação pode até se tornar um pouco desmotivante para o homem comum ou mesmo para o iniciado cristão, pois aqui são expostas excepcionais (e difíceis de seguir) linhas de conduta. Mas como já referi ainda bem que é assim, se Deus veio à terra ainda bem que mostrou o excepcional que Ele é, mesmo que nós à partida ainda estejamos tão longe destes parâmetros. Devo confessar que me sinto longe de atingir a plenitude em algumas diretivas, mas isso não me desmotiva, antes pelo contrário, me motiva a corrigir a mim mesmo passo a passo, do medíocre ao suficiente, do suficiente ao bom e quem sabe um dia, do bom ao excepcional. Dito isto veremos então o que devemos entender deste mandamento.
 

Dar e emprestar a qualquer um que pedir?!?

 Este é um mandamento que muitas vezes cria dúvidas e constrangimentos ao cristão devido a uma incorreta contextualização

 
Talvez um dos assuntos mais sérios que pudéssemos discutir com as outras pessoas tem a ver com dinheiro e mais especificamente a dívida. Sabemos que emprestar dinheiro é uma prática que infelizmente tem constrangido muita gente e até destruído amizades e relacionamentos familiares. Para quem pede pode ser humilhante e vergonhoso, porém, é muitas vezes uma necessidade. Para quem é solicitado pode ser motivo de orgulho ou então constrangimento por falta de coragem de negar. A maioria das pessoas não gostam de emprestar e fogem de quem pede emprestado.
 

Contextualização do mandamento


Antes de mais vamos contextualizar a passagem. Jesus quando fala sobre este tópico está a dar um correto entendimento à Lei de Moisés, no início ele diz:
"Não pensem que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim abolir, mas cumprir.”
Mateus 5:17
E é a partir deste ponto que ele começa a expor qual deve ser o correto entendimento de cada item da lei. Entre cada dispostivo legal a comentar Jesus menciona: "Ouviste o que foi dito...". E desde logo devemos referir que Jesus ao dizer isto não se vai referir diretamente ao que está escrito na Lei de Moisés, mas sim a como ela acabou por ir sendo transmitida de geração em geração, sendo que muitas vezes foi mal interpretada. Assim Jesus no Sermão da montanha vem dar o correto entendimento e elevar o sentido da mesma para a conduta do cristão.
 

Lei de Talião

O mandamento em análise aqui, está incluido na exposição da chamada "Lei de talião- Olho por olho, dente por dente", e Jesus a expõe da seguinte forma:

 No sermão da montanha entre cada ponto de exposição e explicação da lei Jesus diz "ouviste o que foi dito", depois a explica. Neste caso específico da lei de talião ele dá 4 exemplos (ponto 39, 40, 41 e 42)

 
A lei de talião já foi por nós analisada noutro artigo (1) e como vimos essa é a base pela qual um Deus justo condena os ímpios, répobros e impenitentes. Jesus vem inaugurar uma nova era em que o cristão deve deixar a aplicação desse mandamento exclusivamente a Deus. O cristão por sua vez não deve "resistir ao mal".
E interessa também aqui referir que a expressão "não resistir ao mal" é uma expressão hebraica que significa: "não procurar vingaça ou retaliação" quando prejudicado ou ofendido. Tanto assim é que algumas traduções deixam isso bem claro:
Eu porém, digo: Não oponham violência à violência
Mateus 5:39
www.bibliaonline.com.br/ol/mt/5
 
Assim, tendo isto em mente, e vendo que Jesus enquadra a questão dos empréstimos nesse item específico é importante analisar a passagem nesse contexto.
 

Emprestimos na antiguidade 

Frequentemente, em nações da antiguidade, o empréstimo era uma questão séria que envolvia a honra do devedor e podia até custar a vida deste em caso de incumprimento. Cobravam-se juros altíssimos e aqueles que não podiam restituir o empréstimo eram tratados rudemente. À base de antigos registos há conhecimento de se cobrarem juros de metade da safra de um homem pelo uso de um campo, e que a exigência do comerciante restituir em dobro o que tomou emprestado não era considerado ilegal. (Ancient Near Eastern Texts [Textos Antigos do Oriente Próximo], editado por J. Pritchard, 1974, pp. 168, 170) . Às vezes, o tratamento dado ao devedor era muito duro. —  veja Mt 18:28-30.
 

E em Israel?



No antigo Israel, porém, a situação da usura era bastante diferente devido à Lei dada por Deus a Moisés. Empréstimos de dinheiro ou de alimentos eram feitos costumeiramente a co-israelitas pobres ou vítimas de reveses financeiros e, nestes casos, a Lei proibia cobrar deles juros. Aceitar o israelita juros dum co-israelita necessitado, teria significado lucrar com a adversidade deste (veja; Êx 22:25; Le 25:35-37; Dt 15:7, 8; 23:19). 
De estrangeiros, porém, podiam-se cobrar juros. No entanto, mesmo esta provisão da Lei talvez se aplicasse apenas a empréstimos comerciais, não a casos de necessidades reais. Estrangeiros frequentemente se encontravam em Israel como comerciantes em trânsito, e era razoável esperar que pagassem juros, visto que eles também emprestavam a outros com juros (Dt 23:20). As Escrituras Hebraicas censuram aquele que toma emprestado e se nega a restituir o que tomou emprestado (Sl 37:21), e ao mesmo tempo incentivam que se façam empréstimos aos necessitados.(Dt 15:7-11; Sl 37:26; 112:5). A Bíblia refere ainda que "também quem pede emprestado fica na dependência de quem lhe empresta." Provérbios 22:7
Ou seja, o problema da pobreza e empréstimos era uma questão de honra e algo de muito importante na altura de Jesus, e para os judeus ainda mais, pois a Lei de Moisés tinha parâmetros específicos para regulamentar esta área.
 

Voltando à Lei de Talião...

 
Dito isto e voltando à analise de Jesus à Lei de Talião vemos que Jesus ao recomendar "não resistir ao mal" e ser até superior a ele, dá 4 exemplos:
 
1) No campo  da violência física:
Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra.
Mateus 5:39
 
2) No campo da perda jurídica
E se alguém quiser processá-lo e tirar-lhe a túnica, deixe que leve também a capa.
Mateus 5:40
 
3) No campo do abuso político e governamental 
Se alguém o forçar a caminhar com ele uma milha, vá com ele duas.
Mateus 5:41
(No tempo do Império Romano, um oficial poderia obrigar qualquer pessoa a carregar um fardo por uma milha. Era um direito dos oficiais, e quem se recusasse corria um grande perigo. Assim sendo, caminhar a primeira milha era fazer aquilo que era exigido. Quando Jesus diz para caminhar duas milhas ele incentiva o discípulo a não se sentir ofendido e ripostar por tal abuso de poder.)
 
4) No campo do auxílio financeiro
"Dê a quem te pedir, e não volte as costas àquele que deseja pedir-lhe algo emprestado".
Mateus 5:42
E agora estamos em condições de entender, mediante o contexto, que o que Jesus queria que os seus ouvintes praticassem (no importante campo dos empréstimos) era não guardar rancor e responder ao mal com o bem, ajudando o necessitado embora este no passado pudesse ter sido injusto e até recusado fazer o mesmo. E aqui é importante referir que estamos a falar de ajudar realmente os necessitados e não qualquer um que pede sem que se avalie o caso com o discerenimento necessário, pois isso até poderia futuramente prejudicar quem pede, pois entrariamos em conflito com outro mandamento que é o amor (analisaremos porquê adiante) . Isso também entraria em conflito com outros ensinamentos de Jesus que incentivam a uma boa gestão dos bens que nos são confiados por Deus, tal como na parábola da minas (Lucas 19:11-27) e na dos talentos (Mateus 25:14-30). 
 

Cuidado com os empréstimos

Sobre uma má gestão dos bens em caso de empréstimos a Bíblia nos avisa ainda que:
Não estejas entre os que se comprometem, e entre os que ficam por fiadores de dívidas,
Pois se não tens com que pagar, deixarias que te tirassem até a tua cama de debaixo de ti

Provérbios 22:26,27
Ou seja, a própria Bíblia nos aconselha a ter cuidado em questões financeiras, pelo que o mandamento de Jesus em Mateus 5:42 é dado no contexto específico de não guardar rancor e procurar vingança ou retaliação em caso de pedido de empréstimo por um necessitado que um dia nos ofendeu.
 

O mandamento do amor ao próximo

 
E se dar e emprestar é um dos mais nobres mandamentos cristãos, isso no entanto não deve entrar em conflito com outro mandamento: O do amor ao próximo. 
E como tal pode acontecer?
Por incrivel que pareça a alguns, o princípio de dar e emprestar tem limitações. O amor estabelece limites até para as doações. Nós não estamos autorizados a dar a não ser que nossa doação seja um serviço. Isto é, o nosso empréstimo ou doação deve realmente ser uma benção, um auxílio realmente necessário e não algo que pode acabar por prejudicar quem nos pede. 
Sabemos que dar sempre, nem sempre faz bem. Não devemos promover ou patrocionar vícios, escolhas erradas, gastos supérfulos ou caprichos, nesses casos devemos obviamente recusar pois caso contrário estariamos até a prejudicar o nosso próximo, pois quando incentivamos alguém em sua preguiça ou erro, encorajamos essa pessoa a continuar no pecado. Por isso dissemos acima que devemos levar este princípio apenas para os verdadeiramente necessitados e que não têm opção de manter a sua dignidade, pois caso contrário estaremos a prejudicar e não a ajudar.
 

"Dar" - um comportamento extraordinário

E já que falamos de empréstimos ou doações a verdadeiros necessitados, em outra passagem do evangelho, num contexto semelhante, Jesus refere ainda que:
E se emprestardes àqueles de quem esperais tornar a receber, que recompensa tereis? Também os pecadores emprestam aos pecadores, para tornarem a receber outro tanto.
Lucas 6:34
E realmente o que se faz de extraordinário quando se dá ou empresta mas se pretende receber algo em troca?
O ponto de Jesus não é que essa ação está errada, mas que não é extraordinária. Ele chama as pessoas para um comportamento extraordinário, e isto incluirá a vontade de ajudar, até mesmo quem já nos ofendeu, sem esperar nada de volta. 
 
E NA ATUALIDADE, como devemos encarar este mandamento?
 
Pois é, este ensinamento tem um certo enquadramento e contexto e as recomendações bíblicas vistas acima sobre uma boa gestão dos bens mantêm-se ainda hoje válidas, sendo assim o cristão da atualidade deve considerar alguns pontos:
 
1º) Para dar ou emprestar temos que ter
Com certeza que se estivermos a passar algumas necessidades será difícil emprestar ou dar se colocar em causa o nosso sustento ou da nossa família.
 
2º) Quem nos pede emprestado?
É totalmente licito avaliar quem nos está a pedir e porque nos está a pedir. Conforme já analisamos existem situações em que nem sempre o que nos pedem faz sentido e pode nem ser positivo, a atitude e a situação do prospetivo tomador de empréstimo entra na questão.
Está ele passando necessidades por ser irresponsável, preguiçoso e indisposto a aceitar trabalho, embora haja disponível serviço ou bens que ele é capaz de realizar? Neste caso, aplicam-se as palavras do apóstolo Paulo: “Se alguém não quiser trabalhar, tampouco coma.”2Te 3:10.
Como é óbvio também devemos ter em atenção se quem pede é vigarista ou ladrão pois nesses casos é evidente que devemos recusar e até denunciar esquemas fraudulentos.
 
3º) Generosidade
A generosidade e a bondade são atributos que qualquer cristão deve buscar, pois segundo Jesus, é melhor dar que receber e logo, caso nos seja possível, é realmente nobre ajudar os necessitados.
 
Então ponderando estes três fatores com tudo o que analisamos acima, o que fazer?
Mais uma vez amigos, SABEDORIA E BOM SENSO!
Cada caso é um caso e exige uma análise cuidada pois muita coisa está em jogo, no caso de amigos e familiares a situação é ainda mais dificil e a avaliação das consequências da nossa decisão deve ser bem ponderada.  Quanto mais fizermos neste campo melhor, estas são verdadeiras provas de fé e quanto mais dermos, mais ganharemos de Deus. 
Mas ainda assim, Deus não nos pede para sermos “enganados” ou “ludibriados” por quem só se quer aproveitar da nossa boa fé. Em cada caso devemos analisar as circunstâncias e pedir em oração direcionamento a Deus, pois, ajudar sim, mas realmente a quem precisa.
 
Conclusão
Num mundo cada vez mais egoísta e materialista generosidade e o dar sem esperar nada em troca são dois dos atributos em que o cristão mais deve procurar se aperfeiçoar pois sabemos que o nosso coração não deve estar centrado nas riquezas materiais. Quanto mais dermos, mais nos assemelharemos a nosso mestre que até a própria vida deu de forma a pagar o nosso resgate, ainda assim, cada caso é um caso e o bom senso deve imperar.
Existem casos em que podemos estar a ser vigarizados, enganados ou que tentem abusar de nossa boa fé, ora nesses casos devemos recusar. Não é fácil e temos que ter discernimento, mas realmente uma coisa é certa:
Se dermos apenas àqueles dos quais esperamos receber, o que fazemos de extraordinário?
Para ser salvo basta aceitar a verdade e acreditar em Jesus, mas para ser extraordinário temos que ter ações condizentes com o título. Bom senso...
ABRAÇO
 

Referências:

Olho por olho, dente por dente – Vingança ou Justiça?
https://www.nunes3373eb.com/news/olho-por-olho-dente-por-dente-vinganca-ou-justica/
 

 

Fontes:

Empréstimo — Estudos Bíblicos
https://bibliotecabiblica.blogspot.pt/2009/07/estudo-biblico-emprestimo.html
Empréstimos
https://www.estudosdabiblia.net/200139.htm
Empresto ou não empresto?
https://curiosobiblico.blogspot.pt/2012/03/empresto-ou-nao-empresto.html